Artigos

Veia pulsante antes do silêncio eterno

Num brilhante e filosófico ensaio embasado na obra de Rowling, nosso colunista Breno Alvarenga fala da morte, tema delicado tanto no mundo mágico quanto no nosso, tão real e duro quanto o de Harry.Pensando a respeito dos efeitos da perda, Breno nos mostra mais um bom motivo para considerarmos Potter um grande e forte herói.

Não deixe de ler a coluna completa aqui e comentar!

Por Breno Alvarenga

Começar a viver pela morte dos seus criadores não é uma tarefa fácil. Assim se inicia a história do personagem mais adorado dos últimos tempos. Harry Potter com poucos meses de idade já tem a tarefa mais difícil que o ser humano pode aturar: a morte de um ente querido. Esta morte imperdoável é o fator que leva um jovem – bruxo, mas jovem – a exercer a missão que dará um pouco mais de paz a um fardo do qual não escolheu ser dono. Aos treze anos, Harry descobre alguém que tenha, mais próximo, um vínculo familiar com ele. Alguém que, como pai, nutre por ele carinho e amor. Mas, dois anos mais tarde, Harry o perde para o inquestionável e desolador sentimento de solidão. Aos dezesseis, perde aquele que com sabedoria e otimismo o levara a enfrentar o mundo injusto de que fazia parte. Aos dezessete, ele perde mais inúmeros companheiros que o auxiliaram por situações diversas, que com esforço pintaram o preto de branco e limparam a ferrugem de sua alma.

Devemos idolatrá-lo por tamanha força! O garoto que com tanta morte a sua volta decide lutar pela vida. Não a vida que todo dia reclamamos, mas aquela vida que nos faz sorrir ao levantarmos da cama, mesmo depois de tantas sombras. Devemos idolatrá-lo, pois além de ser maior que a presença forte da morte, ele foi capaz de lutar não só pela sua vida, mas pela vida de todos os bruxo que viviam rebaixados pelo sentimento de medo. É de se admirar tal feito, pois em um mundo cada vez mais egocêntrico é difícil acreditar que alguém seja capaz de se reerguer após tantas rasteiras da vida, reerguer-se e ir em busca de justiça. O mundo está cada vez mais propenso a abaixar a cabeça a tantas injustiças e tristezas; a população está se conformando com a vida em um mundo sem essências, sem almas, sem sinceridade. É lamentável saber que um personagem com tanto altruísmo esteja preso nas palavras da literatura.

Deixemos de lamentações e iniciemos nossa busca pelo significado da morte, elemento que tanto assombrou Harry, mas que não foi mais forte que sua índole. Para compreendermos a morte, devemos primeiro compreender a vida. A vida é uma vasta orquestra, ora com harmonias fúnebres, ora com harmonias de mais puro contentamento. Porém, essa orquestra um dia pára de tocar, mesmo tendo despertado os mais diversos sentimentos e momentos nas mais diversas pessoas. Apesar do silêncio estranho causado após o término das sinfonias, tempos depois cantarolaremos o que ouvimos e mesmo sem saber, já não seremos os mesmos. Cada um de nós é uma orquestra, que vista de fora parece simples e superficial, mas dentro dela tudo parece querer seguir um ritmo, o que só acontece naquele último segundo de luz nos olhos. Ás vezes nossa orquestra entra em harmonia com outras, ás vezes, não. Em algumas situações julgamos por muito tempo que duas orquestras têm ritmo, mas em alguma parte da música, saberemos que não é verdade.

A vida é o ápice do mistério. O leve som do suco caindo no copo, o tique-taque do relógio, as latidas do cachorro do vizinho, a porta que se abre rangendo, os passos discretos no assoalho, a faca cortando a manga, o pássaro cantando a mais bela música na árvore sem nenhuma platéia. A gota da chuva caindo no solo sem ser notada, o esbarrão na rua, o pedido com pressa de desculpas, o ‘bom dia’ de alguém alheio, o sorriso grátis para um gato que julgamos irracional. Acima de nós, uma imensidão azul que nos protege e nos olha, e mesmo que essa seja totalmente desconhecida, confiamos nela como confiamos em mais ninguém. A vida é isso: ver e sentir os mais diversos momentos (significantes e insignificantes) com os nossos olhos e saber que mais ninguém presenciou a cena na mesma intensidade; saber que o cérebro de mais ninguém recebeu a mensagem que seus olhos passaram, mensagem esta que no caminho foi interceptada por um boa dose de sentimentos. Viver é lembrar, todos os dias, que só temos uma chance e que se esta é única, é melhor faze-la tornar-se memorável. Não o encarando como mero personagem, acredito que foi este pensamento que fez Harry lutar tão fortemente, lutar pelos mais dignos sentimentos: paz e alegria. Não seria justo com ele mesmo desperdiçar sua única chance na terra abaixando a cabeça e sofrendo. É preciso fazer da vida algo que valha a pena virar um filme, pelo menos é o que penso. Talvez não um filme que agrade a todos, mas um filme que me agrade e que me faça gostar um pouco mais de mim mesmo.

E a morte? Bom, a morte é a escuridão, a quietude, a mesmice. A morte não é negativa, é apenas um descanso para nossa alma. Quem julga quando ela deve descansar? É questão de fé. Mas a morte para mim é tão simples como desligar a TV ou o rádio. Há muita preocupação em se desvendar a morte e seus segredos. Pra quê? A vida é tão mais fascinante…

Breno Alvarenga, apesar de tudo, certamente tremeria à luz verde de um Avada Kedavra.