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O Ministro da Magia de J.K. Rowling

O Ministro da Magia de J.K. RowlingO Ministro da Magia de J.K. Rowling

Agora que a poeira baixou depois de ”Harry Potter and the Deathly Hallows”, Stephen King reflete sobre por que nenhuma resenha fez justiça, e por que as crianças (e seus adultos) jamais lerão da mesma maneira novamente.
Conforme nós prometemos, traduzimos toda a reflexão do autor, que você pode ler clicando em Notícia Completa.

Este artigo contém spoilers!
Se mesmo assim deseja lê-lo integralmente, clique em Notícia Completa.
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HARRY POTTER AND THE DEATHLY HALLOWS
O Ministro da Magia de J.K. Rowling

Entertainment Weekly ~ Por Stephen King
Agosto de 2007
Tradução: Adriana Couto Pereira

Então, agora que o burburinho já foi, a batalha está perdida e vencida – a Batalha de Hogwarts, está – e todos os segredos já saíram do Chapéu Seletor. Aqueles que apostaram que Harry Potter iria morrer, perderam dinheiro; o garoto que sobreviveu virou exatamente isso. E se você acha que isso é um spoiler tardio, não é exatamente um fã de Potter. O ultraje causado pelas últimas resenhas (Mary Carole McCauley do The Baltimore Sun, Michiko Kakutani do The New York Times) já se esvaiu… embora ainda esteja um pouco ácido para muitos fãs.

Está ácido para mim, também, embora não tenha nada a ver com o ultimamente bobo conceito de “spoilers”, ou com a ética de pular a data de publicação do livro. O voto de conspiração da pré-publicação foi, no fim das contas, sempre algo preparado pelas editoras Bloomsbury e Scholastic, e não – até onde eu sei – parte da Magna Carta britânica ou da Constituição dos Estados Unidos. Nem o protesto apaixonado de Jo Rowling (“Estou espantada que alguns jornais americanos tenham decidido publicar… resenhas em completa discordância com os desejos de literalmente milhões de leitores, particularmente crianças…”) me deixou muito emocionado. Esses livros deixaram de ser especificamente para crianças com o decorrer da série; a partir do Cálice de Fogo, Rowling estava escrevendo para todos, e ela sabia disso.

O melhor sinal de quão adultos os livros se tornaram veio pela conclusão – esplêndida – em Deathly Hallows, quando a Sra. Weasley vê a odiosa Bellatrix Lestrange tentando acabar com Gina usando uma Maldição Imperdoável. “MINHA FILHA NÃO, PIRANHA!”, ela berrou. É o piranha mais chocante na ficção recente; uma vez que não há virtualmente nenhuma maldição (no sentido lingüístico, pelo menos) nos livros de Potter, essa aparece com força quase fatal. É completamente correta no contexto – perfeita, na verdade – mas também é uma resposta quintessencialmente adulta para um perigo infantil.

O problema com as resenhas antecipadas – e com aquelas que vieram nos primeiros dias após a publicação – é algo que tem obstinado o magnun opus de Rowling desde o livro 4 (Cálice de Fogo), logo que a série se tornou um fenômeno mundial. Devido à atmosfera de segredo semelhante a um Kremlin que rodeia os livros, todas as resenhas desde 2000 se atém estritamente ao livro de que tratam. Os autores também geralmente são ótimos – Sra. Kakutani não é exatamente uma açougueira – mas a grande popularidade dos livros freqüentemente estraga até as melhores intenções dos melhores críticos. Na sua pressa de preencher suas colunas, e assim continuarem membros gabaritados da Igreja do Que Está Acontecendo Agora, poucos dos que escreveram sobre Potter disseram algo que valesse à pena ser lembrado. A maioria desses críticos de microondas costuma analisar Harry – sem falar em seus amigos e aventuras – de apenas duas formas: sociologicamente (“Harry Potter: Benéfico ou Doentio?”) ou economicamente (“Harry Potter e a Câmara dos Descontos”). Eles pegam uma onda superficial das coisas como enredo e linguagem, mas não fazem nada além disso… e na verdade, como poderiam? Quando se tem apenas quatro dias para ler um livro de 750 páginas, e então escrever uma resenha de 1.100 palavras sobre ele, quanto tempo a pessoa tem para realmente curtir o livro? Para pensar sobre ele? Jo Rowling serviu uma suntuosa refeição de sete pratos, cuidadosamente preparados, belamente cozidos, e amorosamente oferecidos. As crianças e adultos que se apaixonaram pela série (inclusive eu mesmo) saborearam cada bocado, desde o aperitivo (Pedra Filosofal) até a sobremesa (o maravilhoso epílogo de Deathly Hallows). A maioria dos críticos, por outro lado, enfiaram tudo goela abaixo, então complacentemente devolveram artigos semi digeridos nas páginas de seus respectivos jornais.

E por causa disso, poucos escritores famosos, de Salon ao The New York Times, realmente pararam para considerar o que a Sra. Rowling havia planejado, de onde veio aquilo, ou o que significa para o futuro. Os blogs, para completar, também não fazem muito melhor. Eles parecem se preocupar com quem vive, quem morre, e quem fica com quem. Além desses assuntos, é tudo muito bobo.

Então o que aconteceu? De onde veio esse Ministro da Magia?

Bem, há algumas viagens. Enquanto os acadêmicos e cabeçudos críticos de educação ficam resmungando que a leitura está morta e que os jovens só querem saber de seus Xboxes, iPods, Avril Lavigne e High School Musical, os jovens com quem eles estão tão preocupados se viram silenciosamente para as novelas de um Robert Lawrence Stine. Conhecido na escola como “Bob Jovial” Stine, esse cara ganhou outro apelido mais tarde, como – hum hum – “O Stephen King da literatura infantil”. Ele escreveu sua primeira obra de horror adolescente (Blind Date) em 1986, anos antes do advento da Pottermania… Mas depois de pouco tempo, não se podia olhar para a lista de best-sellers do USA Today sem ver três ou quatro de suas obras espalhadas pelo top 50.

Esses livros quase não despertaram a atenção dos críticos – pelo menos até onde eu sei, Michiko Kakutani nunca escreveu sobre “Who Killed the Homecoming Queen?” – mas os garotos deram bastante atenção, e R. L. Stine teve uma onda de popularidade juvenil, alegremente alimentada pela nova onda da Internet, e se tornou talvez o autor infantil mais vendido do século XX. Como Rowling, ele era da Scholastic, e não tenho dúvida de que o sucesso de Stine foi uma das razões para a Scholastic dar uma chance à jovem e desconhecida escritora britânica em primeiro lugar. Ele é razoavelmente desconhecido e desacreditado… mas claro que João Batista nunca teve a mesma fama que Jesus.

Rowling fez bem mais sucesso, tanto crítica quanto financeiramente, porque os livros de Potter cresceram conforme seu desenvolvimento. Esse, eu acho, é o grande segredo (e nem é tão secreto; para compreender visualmente o que quero dizer, compre uma entrada para Ordem da Fênix e veja o antes fofinho Rony Weasley crescendo mais que Harry e Hermione). As crianças de R. L. Stine são crianças para sempre, e as crianças que curtem suas aventuras crescem e as abandonam, como inevitavelmente largam seus Nikes infantis. As crianças de Jo Rowling crescem… e o público cresce com elas.

Isso não seria muito importante se ela fosse uma escritora preguiçosa, mas não é – ela era e é uma autora incrivelmente dotada. Enquanto alguns blogs e mídias importantes mencionam que a ambição de Rowling combina com a popularidade ascendente de seus livros, também ignoram o fato de que seu talento também cresceu. Talento nunca é estático, está sempre crescendo ou morrendo, e em poucas palavras, com Rowling é assim: ela era muito melhor que R. L. Stine (um escritor adequado porém insípido) quando começou, mas na época que colocou o ponto final em Deathly Hallows (“Tudo ficou bem.”) já havia se tornado dona de um dos mais finos estilos em sua língua nativa – não tão boa quanto Ian McEwan ou Ruth Rendell (pelo menos, ainda não), mas superando facilmente Beryl Bainbridge ou Martin Amis.

E, claro, há a magia. É o que garotos querem mais do que tudo; é o que eles necessitam. Isso nos leva aos Irmãos Grimm, hans Christian Andersen, e a boa e velha Alice, correndo atrás do coelho atrasado. As crianças estão sempre em busca do mistério da magia, e elas costumam encontrar.

Um dia, em Bangor, minha cidade, eu estava andando pela rua quando vi um garotinho de uns 3 anos com o rosto sujo, os joelhos cheios de cicatrizes e um ar muito compenetrado. Estava sentado entre a calçada e o asfalto, tinha um galho em sua mão com o qual golpeava a terra. “Fique aí!” ele gritava. “Fique aí, droga! Você não pode sair enquanto eu não disser a Palavra Mágica! Você não pode sair enquanto eu não mandar!”

Muitas pessoas passavam sem prestar muita atenção. Diminuí meu passo, e fiquei observando enquanto pude porque também converso com as coisas que habitam a minha imaginação e peço a elas o mesmo, para que fiquem por lá e não saiam enquanto eu não der permissão.

Fiquei encantado com o “faz-de-conta” do garoto (presumindo que fosse um faz-de-conta [risos]). E me ocorreram algumas coisas. Uma foi que, se fosse um adulto, os policiais já o teriam levado para curar a bebedeira ou para o hospício local. Outra foi que as crianças que exibem tendências paranóicas-esquizofrênicas são simplesmente aceitas na maioria das sociedades. Todos entendemos que crianças são doidas até os 8 anos, mais ou menos, e então cortamos o barato delas.

Isso aconteceu mais ou menos em 1982, enquanto estive me preparando para escrever uma longa história sobre crianças e monstros (It – “Cujo”, em português), e influenciou minhas idéias sobre a história. Mesmo agora, anos depois, penso naquele garoto – um pequeno Ministro da Magia usando um graveto seco como varinha – com afeto, e espero que ele não se achasse muito velho para Harry Potter na época em que os livros foram lançados. Ele pode ter feito isso; fico triste em pensar, mas uma coisa que JRR Tolkein percebeu, e Rowling não, é que à vezes – na verdade, freqüentemente – a mágica se esvai.

Foram as crianças que a Sra. Rowling – como seu precursor da Rua do Medo, mas com consideravelmente mais habilidade – cativou primeiro, demonstrando com a lógica irrefutável de algo como 10 buzilhões de livros vendidos, que as crianças ainda desejam perfeitamente deixar de lado seus iPods e Game Boys para apanhar um livro… se houver magia nele. Que lê-lo é algo mágico, é algo que não deve ser colocado em dúvida. Daria tudo para saber que muitos adolescentes (e pré-adolescentes) escreveriam essa mensagem nos dias seguintes ao lançamento do último livro: NÃO ME PERTURBE, HOJE ESTOU LENDO.

Provavelmente, a mesma coisa aconteceu com os livros Goosebumps de R. L. Stineating, mas diferente dele, Rowling trouxe os adultos para o círculo de leitores, fazendo-o aumentar muito mais. Este não é um fenômeno ímpar, embora pareça estar associado principalmente a autores britânicos (como aconteceu com Huckleberry Finn, claro, uma sequência para a história de seu irmão caçula Tom Sawyer). Alice no País das Maravilhas começou como uma história contada pela menina Alice Liddell aos 10 anos de idade, por Charles Dodgson (ou Lewis Carroll); hoje é narrada em cursos de literatura universitários. E Watership Down, a versão de Richard Adam para a Odisséia (apresentando coelhos ao invés de humanos), começou como uma história para entreter as filhas pré-adolescentes do autor, Juliet e Rosamond, em uma longa viagem de carro. Como livro, entretanto, foi vendido como “fantasia adulta” e se tornou um bestseller internacional.

Talvez seja a prosa britânica. É difícil resistir ao hipnotismo daquelas vozes calmas e sensíveis, especialmente quanto elas se fazem acreditar. Rowling sempre foi parte da tradição de contar histórias bem sequenciais (Peter Pan, originalmente uma peça de Scot J. M. Barrie, é outro caso digno de nota). Ela nunca perdeu o rumo de seu tema principal – o poder do amor para transformar crianças confusas, freqüentemente assustadas, em adultos decentes e responsáveis – mas seu texto é sobre uma história. Ela é mais lúcida que luminosa, mas tudo bem; quando expressa sentimentos fortes, ela mantém sua sobriedade sem negar sua veracidade ou poder. O exemplo mais doce em Deathly Hallows aparece logo, quando Harry se lembra de sua infância na casa dos Dursley. “Surgiu nele um sentimento estranho e vazio ao se lembrar daquela época”, Rowling escreveu. “Foi como lembrar de um irmão mais novo que fora perdido”. Honesto, nostálgico; sem apelação. É um pequeno exemplo do estilo que capacitou Jo Rowling a cruzar a ponte entre gerações sem suar ou perder a dignidade jovial que é um dos maiores encantos da série.

Seus personagens têm vida e são bem delineados, seu ritmo é impecável, e embora ocorram ocasionais quebras de continuidade, a história é verdadeiramente coesa ao longo de suas mais de 4.000 páginas.

E ela tem plena posse do famoso humor britânico, como quando Rony, tentando sintonizar um novo programa pirata em seu rádio bruxo, apanha um pedaço de uma canção pop chamada “Um Caldeirão Cheio de Amor Fumegante”. Deve ser alguma versão mágica de Donna Summer. Também tem seu ponto de vista homorístico de um tablóide britânico – assunto que, tenho certeza, ela conhece bem – na personalidade de Rita Skeeter, talvez o melhor nome de personagem de ficção desde aqueles de Jonathan Swift. Quando Elifas Doge, o perfeito cavalheiro bruxo, chama Rita de “uma truta intrometida”, eu me senti erguendo o copo e brindando a isso. Segura essa, Página Seis! Tem um monte de carne nos ossos desses livros – boa escrita, sentimentos honestos, uma doce porém descompromissada visão da natureza humana… e também dureza: “MINHA FILHA NÃO, PIRANHA!”. O fato que Harry atrai adultos tanto quanto crianças nunca me surpreendeu.

Os livros são perfeitos? Claro que não. Alguns capítulos são muito longos. Em Deathly Hallows, por exemplo, há uma enorme e cansativa parte sobre perambular por aí e acampar; começa a parecer que a Sra. Rowling estava de olho no relógio para que o livro coubesse no tempo de um ano letivo, como os seis anteriores.

E às vezes ela sofre da síndrome de Robinson Crusoé. Em Crusoé, a qualquer momento que o herói precisasse de alguma coisa, ele ia até seu navio – que estava convenientemente encalhado em um recife ao redor da ilha deserta – e pegava o que queria do depósito (em uma das mais estranhas falhas de continuidade da história da literatura inglesa, Robinson uma vez nada nu… e depois enche seus bolsos). Da mesma maneira, a qualquer momento que Harry e seus amigos estivessem em encrencas, bastava fazer algum novo feitiço – fogo, água para apagar o fogo, escadas que convenientemente se transformam em escorregador – e escapavam. Aceitei a maior parte deles, em parte porque há em mim uma dose de infância suficiente para me alegrar ao invés de duvidar (de certa forma, os livros de Potter são mais como A Alegria da Magia do que A Alegria da Cozinha), mas também porque entendo que a mágica por si só é algo que não tem limites. Ainda assim, na hora em que a Batalha de Hogwarts estava em seu clímax com os gigantes, retratos e bruxos voadores, quase esperei surgir alguém com uma boa e velha MAC-10 e começar a atirar como Rambo.

Se todos esses feitiços criativos – produzidos no momento exato como a coisa do navio de Crusoé – são um sinal de exaustão criativa, é o único que percebi, e isso é mesmo incrível. Na maior parte, Rowling está apenas se divertindo, botando para fora, e quando um bom escritor está se divertindo, o público quase sempre se diverte também. Você vai ter seu retorno financeiro (e, Leitor, ela teve).

Mais uma coisa: Os acadêmicos cabeçudos parecem achar que a mágica de Harry não é forte o bastante para fazer com que uma geração de não-leitores (especialmente o lado masculino) se transforme em traças de livros… mas eles não serão os primeiros a subestimar a mágica de Harry; vejam o que aconteceu com Lorde Voldemort. E, claro, os cabeçudos jamais darão ao Harry o crédito de primeiro lugar por essa influência, se a evidência vier em forma de listas de bestsellers. Um herói literário tão grande quanto os Beatles? “Jamais”, gritarão os cabeçudos. “O romance tradicional está tão morto quanto Jacob Marley! Pergunte a quem sabe! Ou seja, pergunte a nós!”

Mas a leitura nunca morreu para as crianças. Au contraire, agora mesmo é provavelmente mais saudável que as versões adultas, que deve publicar algo como ao menos 400 “romances literários” chatos e pretensiosos a cada ano. Enquanto os cabeçudos estão prevendo (e lamentando) o surgimento da sociedade pós-literária, os garotos estão complementando o seu Potter com narrativas de Lemony Snicket, as aventuras do adolescente Artemis Fowl, a trilogia de Philip Pullman, as aventuras de Alex Rider, os mistérios maravilhosos de Peter Abrahams, as histórias daquele jeans viajante. E claro que não devemos esquecer o invencível (apesar de meio fedido) Capitão Cueca. Além disso, que tal darmos um pouco da velha tiara para R. L. Stine, o jovial João Batista de Rowling?

Comecei citando Shakespeare; vou fechar com The Who: As crianças estão certas. Só que o tempo que elas permanecerão em tal caminho depende de escritores como J.K. Rowling, que sabe como contar uma boa história (importante) e fazer isso sem ser chata (mais importante) ou recorrer a uma escrita exageradamente confusa (vital). Porque se o campo é deixado para um bando de Trouxas intelectuais que acreditam que o romance tradicional morreu, eles vão acabar matando mesmo a coisa.

Eu estou falando sobre o bom e velho faz de conta. Conhecido nos círculos mais formais como Ministério da Magia. J.K. Rowling deixou o padrão: ele é bem alto, e Deus a abençoe por isso.

Thanks, EW!