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Esquecimento em Harry Potter

Nosso colunista, Luis Nakajo, continua nossa área de Crônicas abordando o esquecimento na obra de Harry Potter. Como escreveu tão bem o colunista, são nossos pensamentos líquidos ou gasosos, físicos ou intocáveis? Quando nos esquecemos deles, eles “vão” para onde? Podemos simplesmente colocá-los numa penseria para esvaziar a mente?

Descubra nessa brilhante análise filosófica sobre o ato de esquecer na obra de J.K. Rowling e sua importância para o desenrolar da saga.

Você pode conferir a coluna completa aqui.

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Esquecimento em Harry Potter

Filho da Noite, neto do Caos, o Esquecimento pode ser alívio e salvação; mas também pode causar culpa, remorsos, dor e danação prolongada na Purgatório

Por Luis Nakajo

Esquecer é atitude rotineira. Pode ser premeditada, repentina, resultado de noites mal dormidas –ou de traumas e obstáculos, correria e falta de fósforo na alimentação. Mas… como esquecemos? São nossos pensamentos líquidos ou gasosos, físicos ou intocáveis? Quando nos esquecemos deles, eles “vão” para onde?

Definir o mecanismo do esquecer foi tarefa de muitos pensadores e hoje caiu nos braços de neurocientistas, que tentam, com base no entendimento do corpo humano, explicar a dança de substâncias que borbulham pensamentos. Bruxos também analisam cérebros, imersos num tanque. Também se perguntam sobre a natureza do pensamento. E, como o próprio nome do departamento responsável por esses estudos aponta, continuam um Mistério com M maiúsculo.

Nossos antepassados gregos, porém, não precisaram de ressonâncias magnéticas, departamentos de magia experimental ou dissecações de bichinhos para fundar boa parte de tudo o que reconhecemos como esquecimento. Para eles, era essencial evitá-lo. Dos mitos –todos muito alegóricos, todos muito surpreendentes depois de analisados-, podemos ter uma visão geral do que é esquecer e, também, claro, as suas vantagens e inconvenientes.

NÝX, FILHA DO KHÁOS
Para os gregos, o esquecimento é filho da noite (Nýx), que por sua vez é filha do Kháos, o vazio primordial de onde vieram as coisas. Ao mesmo tempo em que é o negrume onde o que existe está suspenso, Kháos ameaça sempre o seu oposto: Gaia, aquilo que existe. As dentuças de Kháos estão prontíssimas para engolir a consciência dos seres pensantes –e puxá-los para a não-existência.

Gaia gera lindos, produtivos, engenhosos e brilhantes filhotes. Gera deuses como Athena, Dioniso, o belo Apolo, Hermes, Zeus. Do Kháos, surge o pólo do nada, do indistinto, embaciado. Esquecido. Inexistente.

Porque lembrar não deixa de ser um ato de reconhecimento: lembro-me de algo que existe (lembrar é dar vida ao passado e torná-lo presente). Esqueço-me (me olvido) daquilo que não me tem importância. Ou que tem importância, mas deixou de existir em minha memória – e faz doer a mente, quando procuramos pela peça que falta.

Esquecer, para usar um termo de Platão, é rememorar. Em inglês, o verbo remember explica bastante. Re-member: recolocar as peças nos lugares certos, reunir as partes que montam uma recordação. Essas partes viriam dum negrume, que se cria ao passar dos anos. E muitas coisas ficam nesse negrume. Não podemos nos lembrar de tudo o que nos aconteceu. Ou de tudo a que demos atenção.
Esquecer seria se ver neste espaço de negrume primordial –onde nada tem nome e tudo é nada. Nessa terra enevoada, está o que deixamos para trás. Com Freud, séculos depois, as coisas mudam um pouco. A terra enevoada ganha, grosso modo, o nome de subconsciente, o porão da experiência humana. Onde ratazanas e bichos de pelúcia vivem juntos.

Para Platão esquecer era extremamente ruim. O homem “ideal” é aquele que se lembra do que viu no mundo das idéias, de onde veio, e encontra, no mundo físico, nos objetos mais mundanos, as formas racionais, as idéias e leis de que o mundo sensível é apenas cópia mal feita.

A Beleza, exemplo já amorosamente comentado, existe perfeito no mundo das idéias; mas o homem, neste mundo, pode alcançá-la ao contemplar uma obra de arte –ou o perfil do ente amado. A physis funcionaria como escada para o mundo das idéias.

DA RUA DOS ALFENEIROS A KING’S CROSS
Tudo isso eu digo para que possamos brincar de filosofia em Harry Potter nas próximas linhas. Com desenvoltura. Assim como lemos uma pilha de sete livros sobre nosso Ulisses, Harry James Potter.

Desde a primeira página até a última da série, esquecer é fundamental. Sim: esquecer.

A graça toda de ler um livro é este jogo de seleção do que mantemos em mente e daquilo que jogamos na beira do caminho. Quanto mais mergulhamos numa narrativa, mais detalhes a mente passa em revista, seleciona, pesa, descarta, pondera.

Ora, o escritor de thrillers surpreende: usa pistas tênues ao longo de todo o livro para, no final, dar sua cartada. Geralmente aponta um assassino que ninguém cogitaria (lembrem-se de Olho Tonto Moody no final d’O Cálice de Fogo, ou de Peter Petigrew, ao fim d’O Prisioneiro de Azkaban). É este elemento surpresa que permite tanto prazer na leitura: apalpar pelo que vem, sempre com a claustrofóbica sensação de que se sabe para onde a história aponta. Quando o fim é revelado, faz sentido. É um jorro de sentido, antes apenas visto de relance. É a lógica das aventuras detetivescas e, em geral, dos best sellers de aventura.

Em Harry Potter, há tantos detalhes, que as mais diversas interpretações podem ser feitas (Snape bom? Snape ruim? Snape maquiavélico? Snape-amante-de-Lilian? Snape-amante-de-Harry?). É apenas a lucidez do narrador que nos delimita o verossímil em uma fanfiction mal feita. Há autoridade na voz que nos explica bem – que narra com deleite e despe o mistério pouco a pouco, até sua completa nudez.

SAPOS DE CHOCOLATE: PHARMAKÓN
Agora, aos personagens.

O primeiro exemplo interessante que me vem à mente é a “descoberta” de Nicolas Flamel, que, antes de tudo, era estranho a Harry & cia. Após ler o perfil de Dumbledore numa das figurinhas dos Sapos de Chocolate, Harry só vai se lembrar desta informação quando Neville Longbottom lhe botar outra figurinha igual debaixo do nariz.

O engraçado é que Neville não tem uma memória privilegiada. Tem até um Lembrol, aparelhinho muito parecido com a velha tradição de amarrar um laço no dedo, para se lembrar de algo (método nem sempre efetivo, diga-se).

Mas esse companheiro desmemoriado “fornece” a Harry a chave para a “lembrança”. Fornece, na verdade, o que Platão classificaria de pharmakón. No grego, pharmakón é palavra dúbia –parecida com a nossa “droga”, que serve tanto para remédio (farmácia) quanto para veneno. Pharmakón deve ser administrado na correta medida –do contrário, faz mal.

Mas, por que seria um card de Sapinho de Chocolate um pharmakón? Simples: para Platão toda forma de escrita é um pharmakón. Transferimos nossa memória para folhas de papel e cards de sapinho. Deixamos de exercitar a mente e acumulamos nossa memória em objetos ao nosso redor.

Isto deixa Platão puto: a escritura mata a cultura oral e nos faz confiar num método que atrofia a memória. O nome “Flamel” soa familiar, desperta aquela cócega de reconhecimento quando Hagrid abre o bico, mas no fim a lembrança não surge na superfície. Faltou a Harry e amiguinhos um pouquinho mais de treino da memória, que eles deixam de exercitar exatamente porque tudo que precisam saber está escrito, registrado, impresso. Isso, todos nós fazemos. A internet é um enorme, gigantesco pharmakón. As enciclopédias o são, assim como os nomes que temos na agenda, com data de aniversário.

De acordo com um outro pensador, este espanhol, Juan Luis Vives, deve-se “treinar diariamente a sua memória, para que não haja dia em que esta não tenha de aprender algo de cor”. Ele prega exatamente o que na Antiguidade clássica se tinha como ideal de educação: garotos decoravam a Odisséia e a Eneida, poemas épicos gigantescos, e saíam recitando por aí, palavra por palavra. Memória de elefante, a deles. Típico do que Platão lamenta perder.

Mas… falar em livros decorados não lembra alguém que recita livros quase literalmente? Hermione!

HERMIONE: MEMÓRIA PARA CRIAR
A própria Hermione também sente cócegas na mente quando ouve o nome Flamel, mas não se lembra do quem se trata. E fica desconfortável, mais que o necessário. Pois, vejam bem, Hermione é a representante da super-memória, a guria que decora um conteúdo absurdo de informação, exatamente como Juan Vives desejava.

Esta capacidade de lembrar tanto, porém, pode trazer problemas. Valéry considera uma má educação essa baseada na decoreba. Ele chega a denominar tais estudantes de “papagaios”, que repetem, repetem, sem saber o que repetem. Para ele, o papagaio é um animal ainda mais burro que o próprio burro, simplesmente porque o papagaio fazia muito mais alarde com sua memória, tão boa quanto a do burro.

Não é o caso de nossa Hermione, que sabe articular o conhecimento decorado e fazer as suas sínteses, ter opinião própria e se aproveitar de sua memória para fazer prodígios. Emmanuel Kant dizia que, para participar do jogo intelectual, era preciso memória – para ser original, era preciso conhecer o mínimo possível; antes de inventar um livro, por exemplo, tem-se que conhecer as palavras e seus inúmeros significados e possíveis combinações. Disso Hermione não carece.

O ESQUECIMENTO DA PENSEIRA: LEMBRAR PARA ESQUECER
A Penseira de Dumbledore intriga. A primeira vez que a vemos é n’O Cálice de Fogo, e sua introdução na trama pode ser vista como nova ferramenta de narração do passado: fica mais excitante explorá-lo entrando nas memórias do que simplesmente escutando-as de uma das personagens. Dá mais ritmo ao texto.

A Penseira não passa de um recipiente, que armazena e prospecta lembranças determinadas. Mistura de peneira, bacia e TV de plasma – literalmente -, ela permite a Dumbledore organizar a torrente de seus pensamentos, como ele explica a Harry.

Na literatura de Proust, podemos encontrar paralelos interessantes com essa visão de Dumbledore. Para Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido, a memória é um turbilhão de lembranças que vêm e vão num caldo alucinante. Engrossar este caldo com leituras, experiências e reflexões é a meta do autor. Porque, para ele, o escritor é o ser que se deixa levar pelo que lhe vem à mente e o usa como ponto de partida para a criação artística. É uma recepção passiva, seguida de uma criação ativa.

Ora, com a confusão de lembranças se remexendo em nosso íntimo, fica difícil estabelecer nexo entre determinados acontecimentos –e, lembrem-se, Harry Potter é um imenso romance policial que pouco deve à Agatha Christie.

Dumbledore, que precisa utilizar sua perspicácia para perscrutar os desígnios de Voldemort, não pode se dar ao luxo de esperar que uma lembrança lhe venha à mente. Coloca suas lembranças, pois, na Penseira. E assim traça links entre as mais variadas lembranças e fecha o cerco contra Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado.

Para extrair uma lembrança, porém, tem-se de relembrar a tal memória, para depois largá-la no furacão de fumacinha líquida da Bacia Mágica. Após se “livrar” de determinadas lembranças, Dumbledore é livre para se esquecer delas (não se esqueçam de que algumas lembranças são chiclete e outras, contaminadas pela paixão da hora). Sob esse ponto de vista, a Penseira também é pharmakón. Se a roubassem de Dumbledore, ele estaria frito, porque não se lembraria tão bem, com a memória sem treino depois de tanto tempo relegando esse serviço à Penseira.

Mas, em nosso mundo trouxa, o que seria a Penseira? Nossos diários, talvez. A verdade é que pouco ligamos para este fluxo de informação que nos enxágua constantemente. Perdemos muitas de nossas lembranças porque não nos damos o luxo de esquecê-las, despejá-las em páginas, em blogs ou o escambau.

ESQUECER: ESVAZIAR A MENTE
Para praticar Oclumência, deve-se esvaziar a mente. Esse procedimento é um acalmar da memória, que passa a operar em penumbra, em estado latente, sem algo muito definido em mente. Diminuir a excitação mental, os pensamentos, lembranças: eis a meta do Oclumente. A memória se retira a camadas mais profundas do Espírito; gera-se esquecimento.

É o que os budistas utilizam com ganas de alcançar ao nirvana, estado em que, livres dos pensamentos mundanos, percebem que são Um com o Todo; de acordo com eles, nós nos dissolveríamos neste estado de esquecimento e entenderíamos a dinâmica de tudo –entraríamos em êxtase.

E na morte, como podemos ver na Odisséia, de Homero, o esquecimento ameaça a glória dos homens. A kléos áphtiton (glória imorredoura) é o que Aquiles busca ao se arriscar na Guerra de Tróia. Prefere morrer jovem e ser lembrado por sua bravura do que envelhecer e ser esquecido mal seu corpo esfrie.

Outro escritor que via a morte como a ladra da memória dos homens é Dante. Sua Divina Comédia não passa duma tentativa, diz ele próprio, de relembrar os homens que morreram e cujos nomes foram esquecidos. Claro, Dante se aproveita para alfinetar os homens vivos: lista os pecados de todos os devassos que encontra nos círculos do inferno, mas não deixa de trazer à tona rostos há muito esquecidos.

LÉTE: A DEUSA DA FONTE, O RIO DO OLVIDO
Quando morremos, diziam os gregos, temos de andar um trecho considerável. Dar uma volta pelos domínios do além. No meio destas paragens, em determinado vale, correm dois rios. Um deles, o Lete, apagava da mente tudo o que se passara em vida. Bebesse desta água, o peregrino se esquecia até de quem era. Mas se esquecia dos podres da vida. Das feridas.

Logo após o Lete, porém, corre outro rio. De efeito contrário. Bebesse desta água, o peregrino se lembrava das belezas de sua vida. E, seguia, assim, para o Paraíso, para o “Céu”.

Como um feitiço de Memória bem lançado, o esquecimento é seletivo.

A mesma mitologia em torno da água do esquecimento é encontrada na obra de Ovídio Naso, poeta romano “da nata”. Os jovens de sua época, como os de qualquer época, se debulhavam em lágrimas pelos amores malsucedidos. E recorriam não a chocolates e shoppingterapia com os amigos, mas sim às águas de uma fonte, exatamente a fonte da Deusa Léte. O que para os gregos, alguns séculos atrás, era perigosíssimo, o esquecimento ganha utilidade. Bebendo desta água, sob a proteção de Léte, os jovens se esqueciam das feridas causadas pelo sofrimento.

SNAPE: A PARTE
E só para terminar: perdoar é esquecer o que de ruim foi feito contra si. Snape não quer se esquecer do que James lhe fez, porque fazê-lo seria esquecer de muitas outras coisas atreladas. Como os detalhes que descobrimos em Deathly Hallows e que deixo à descoberta própria do leitor.

Luis Nakajo é estudante da ECA-USP