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Harry Potter e a Literariedade

Nosso novo colunista, Maik Wanderson, faz sua estréia em nossa área de Crônicas com um texto analítico sobre uma das grandes questões levantadas tanto por aqueles que gostam quanto por aqueles que não gostam da obra escrita por J.K. Rowling: Harry Potter é ou não é literatura?

Você pode conferir a coluna completa aqui.

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Harry Potter e a Literariedade

Por Maik Wanderson

Quando se ouve falar em Harry Potter, é quase impossível não lembrar do grande sucesso de bilheterias produzido pela Warner Bros. – tanto que algumas poucas pessoas parecem esquecer que os filmes foram baseados nos livros escritos pela escocesa Joanne Kathleen Rowling, hoje conhecida apenas como J. K.. Professora de línguas clássicas, ela teve a idéia de escrever Harry Potter em 1990, durante uma viagem de trem de Manchester para Londres. Entretanto, ao imaginar a história de um menino bruxo que vai para uma escola mágica, ela não sabia que iria se tornar uma das pessoas mais ricas e influentes da Grã-Bretanha. E se nem a própria autora pôde reconhecer de imediato o potencial dessa idéia, menos ainda as editoras; por isso mesmo o primeiro livro da série só foi publicado em 1997 na Inglaterra pela Bloomsbury, décima terceira editora que Rowling procurou, após ter ouvido sonoros “nãos”.

Com um surto de publicidade, Harry Potter e a Câmara Secreta chegou ao topo da lista dos mais vendidos – e em 2005, Harry Potter e o Enigma do Príncipe, em apenas duas semanas, vendeu mais exemplares que O Código Da Vinci em um ano. Ao todo, a série já vendeu mais de trezentos e vinte e cinco milhões de livros, em quase duzentos países, uma conseqüência numérica da Potter-mania.

Mas o que esses livros têm de especial para encantar tamanha legião de fãs? O enredo do primeiro livro, Harry Potter e a Pedra Filosofal, é bem simples: Harry, um garoto de onze anos, era maltratado pelos tios que o criaram desde bebê, pois seus pais teriam morrido em um acidente de carro; então um dia ele descobre que é um bruxo, e como tal, deve ser educado na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, para aprender a dominar suas habilidades especiais. Mas ele não é apenas um bruxo, é o mais famoso do mundo, por ser a única pessoa que sobreviveu a um ataque do cruel Lord Voldemort, que matou os pais de Harry, mas perdeu seus poderes e sua forma física ao tentar assassinar o garoto.

A partir daí, inicia-se uma saga que acaba de se completar com o lançamento do sétimo volume. No início dessa saga, é constante o sentimento de que o Lord Voldemort ronda a todo instante, como uma sombra maligna, algo que assusta as pessoas pela simples menção do nome; até que no quarto livro, ele finalmente recupera seu corpo. A partir daí, o jovem Harry e seus amigos lutam para impedir que o Lord das Trevas retome o poder, ao mesmo tempo em que crescem e enfrentem problemas comuns à grande maioria das crianças e adolescentes. Isso possibilita a identificação dos leitores com os personagens, que não ficam dando uma de heróis o tempo todo; Harry, por exemplo, consegue derrotar um dragão feroz, mas não tem a mínima capacidade de convidar uma garota para o baile de inverno.

Assim como Harry, o leitor também vai se tornando íntimo do mundo da magia aos poucos, conhecendo novos personagens, lugares e criaturas. Nos livros há também referências a lendas do mundo real, como a da Pedra Filosofal, fabricada por Nicolau Flamel, que acabou se tornando personagem da história. De certa forma, é como se o leitor também estivesse deixando de ser trouxa (pessoa não-mágica). Essa incursão no mundo criado por J. K. Rowling se reflete no próprio vocabulário dos Potter-maníacos. Se você nunca leu nenhum dos livros da série, certamente não vai entender nada ao ouvir palavras como Grifinória, Lufa-Lufa, Corvinal, Sonserina, Hogsmeade ou Horcrux; mas se você é fã de Harry Potter, esses termos devem fazer parte do seu dia-a-dia.

A verdade é que, se a série deu à autora fama e dinheiro, também causa muita polêmica. Enquanto há aqueles que adoram o bruxo, há os que o odeiam e condenam. Os livros são alvo de crítica principalmente para dois grupos: no primeiro se incluem religiosos católicos e evangélicos, segundo os quais as obras são satânicas por induzirem as crianças à prática de bruxaria; no segundo grupo anti-Harry-Potter estão professores e alunos da área de letras – segundo estes, os livros de Harry Potter não são obras literárias; mas o que são então?

Antes de dizer se Harry Potter é ou não literatura, é preciso rever o próprio conceito de obra literária. De acordo com René Wellek e Austin Warren, em seu livro A Teoria da Literatura, a obra literária é aquela que além de transmitir uma idéia, também valoriza a própria linguagem, já que explora muito mais profundamente os recursos lingüísticos, como metáforas, antíteses, emprego de palavras em sentido figurado etc. Há ainda um fator primordial no que diz respeito à diferenciação entre obras literárias e não-literárias, é a ficcionalidade. Uma obra de literatura fundamenta-se essencialmente na ficção, mesmo que o autor se inspire num fato real ou até narre algo que realmente aconteceu, pois ele jamais conseguirá transmitir para o papel os mínimos detalhes da realidade. Além disso, o escritor pode acrescentar à narração de um fato verídico personagens fictícios.

Wellek e Warren chamam de literariedade o conjunto de características que nos possibilitam distinguir uma obra literária das demais. Fica claro que o elemento fundamental da literariedade é a ficcionalidade, sendo esse o traço mais marcante da arte literária. Sendo assim, toda obra de ficção é literatura. Logo, não há dúvidas de que Harry Potter, sendo uma obra ficcional, possui literariedade, e consequentemente é literatura – a não ser que alguém pense que os livros escritos por J. K. Rowling são o relato jornalístico de algo que realmente aconteceu. Isso não significa dizer que a autora escocesa seja dotada de uma genialidade ímpar, ou que suas obras sejam grandes obras literárias, claro que não! Há uma grande diferença entre literatura e boa literatura. Dizer que uma obra de ficção é literatura é uma coisa, mas daí a dizer se ela é boa ou ruim, é completamente diferente – essa seria já uma questão valorativa, e a esse respeito, Wellek e Warren dizem o seguinte: Esta concepção de literatura incluiria nela, assim, todas as espécies de ficção, ainda que se tratasse do pior romance, do pior poema, do pior drama. Segundo ela, a classificação como arte ou não-arte deveria constituir questão distinta de valoração. (1985, p. 29).

Já na questão da suposta indução ao satanismo, prefiro não me demorar, haja vista o fato de isso não interferir no valor literário da obra. Sendo Harry Potter uma obra literária, faz referência a um mundo ficcional, sobre o qual a autora tem total domínio, podendo estabelecer suas próprias leis, sem se preocupar com as normas do mundo real. Logo, os livros não podem de maneira alguma ser julgados por critérios extraliterários, embora seja mesmo inegável a onipresença de rituais de magia na trama – e não poderia ser de outra maneira, já que a história se passa em uma escola de bruxaria. Porém, esperar que alguém leia Harry Potter e se transforme em feiticeiro é como esperar que uma pessoa assista aos filmes do Homem Aranha e vá saltar de prédio em prédio. De qualquer forma, julgar uma obra por esse ângulo é uma atitude de puro preconceito, assim como a de algumas pessoas do meio universitário, que declaram guerra a Harry Potter sem ao menos lerem os livros.

Mesmo sendo uma obra de valor literário menor, a saga de Harry Potter não é uma mera seqüência aleatória de fatos inventados por uma loura excêntrica. Acreditem ou não, J. K. Rowling sabe o que faz e em que rumo a história caminha. É interessante ver como ela consegue arquitetar a trama baseando-se em oposições dicotômicas, a começar pela clássica entre bem e mal.

No começo da história, quando Harry ainda tem só onze anos de idade, tudo parece uma versão masculina de Cinderela: o órfão que sofre nas mãos da família malvada. Mas, quando ele descobre quem realmente é, e a que mundo pertence, deixa de ser oprimido e passa a ser opressor. Seus tios temem-no por suas habilidades, e principalmente por pensarem que os vizinhos podem descobrir que seu sobrinho é anormal, uma aberração.

Vivendo no mundo dos trouxas, Harry é um garoto comum que só usa as roupas velhas do primo, não tem amigos e agüenta os maus-tratos da família. No mundo dos bruxos, ele é famoso, rico e tem muitos amigos, e o principal, é feliz. O ambiente da escola de Hogwarts é bucólico, medieval, e proporciona felicidade mesmo sem as maravilhas eletrônicas das quais tanto dependemos, ou de acordo com os bruxos, alternativas inventadas pelos trouxas para sobreviverem sem magia. Já ficam claras então as tensões fama/ostracismo, amizade/solidão, pobreza/riqueza.

A tensão entre vida e morte também é evidente na trama. Para tornar-se imortal, o Lord Voldemort cria várias horcruxes, objetos enfeitiçados que podem guardar parte da alma de uma pessoa. Mas o preço disso é caro: é necessário assassinar uma pessoa – é a morte gerando a vida eterna. Algo semelhante acontece com Voldemort e Harry – de acordo com a profecia descoberta no quinto livro, A Ordem da Fênix, um só pode sobreviver após matar o outro.

Contudo, se em sua composição a obra é dicotômica, no que diz respeito ao público leitor não há oposição. Adultos e crianças acompanham a trajetória do jovem bruxo. Muitos não agüentaram esperar pelo lançamento do sétimo livro – e definitivamente último – no Brasil, e compraram o original em inglês; outros, que não dominam a língua-mãe de J. K. Rowling, deleitaram-se nas inúmeras traduções não-oficiais que circulam pela Internet, pelo menos enquanto dez de novembro não chega.

Os adultos procuram muitas vezes nesses livros um refúgio, uma mágica que solucione os problemas do mundo real. Já o encantamento do público infantil é fácil de entender; afinal, que criança não gostaria de ir para uma escola incrível como aquela onde tudo pode acontecer a qualquer hora?! Numa época tão conturbada como a que vivemos, ir para Hogwarts é uma boa alternativa.

Maik Wanderson é estudante de Literatura de Língua Inglesa.