Artigos

Meu amigo é um psicopata

Não adianta: quem tem Harry Potter no coração inevitavelmente o vê em todas as partes. Podemos recorrer a outros livros, outras histórias, outras teorias… mas ele sempre está lá. Claro: ele é o reflexo de nossas vidas.

[meio-2]
Mas e quando encontramos nele o reflexo da parte… estranha, anormal? Mariana Rezende enxergou Lord Voldemort muito profundamente no livro “Meu amigo é um psicopata”, de Martha Stout. Seria ele amigo ou psicopata? Descubra aqui e diga sua opinião.

por Mariana Rezende

Em meio ao show de fogos na virada do ano, estabeleci metas que — aparentemente — não combinariam juntas, contudo acabaram me guiando até o tema de hoje. Primeira meta: escrever uma coluna (ok, talvez duas) que não girasse em torno dos Marotos. Segunda meta: começar o ano lendo qualquer coisa, menos Harry Potter. Essas metas podem parecer fáceis para qualquer um que não cresceu em Hogwarts como nós, mas na verdade provaram ser um tremendo desafio. Criando coragem, segui o conselho do meu pai (“Harry Potter de novo? Vai ler outra coisa, menina!”, ele disse, com toda sua sabedoria trouxa), deixei meus sete livros em casa e me aventurei pela livraria com a mente aberta. Imaginem a minha surpresa, então, quando encontrei noutros parágrafos o perfil desprovido de nariz do meu finado inimigo.

“Meu vizinho é um psicopata”, escrito pela psicóloga Martha Stout, foi a obra que chamou minha atenção. Na capa, a doutora começa disponibilizando a informação de que uma em cada 25 pessoas é um psicopata; e, ainda, prometia ajudar-nos a identificá-los no dia-a-dia. Pensei que 2011 pudesse tirar proveito dessas informações, e não hesitei antes de levar o livro comigo. Logo me vi devorando cada página, tentando imaginar como seria viver sem consciência. Sem possuir essa corda invisível que nos conecta com as pessoas ao nosso redor; que faz com que nos importemos e nos identifiquemos com a nossa família, ou com um melhor amigo — seja de duas ou quatro patas. Lembrando da proporção chamativa — e assustadora — incrustada na capa do livro, não consegui acreditar que alguém dentro do meu círculo social poderia ser incapaz de sentir uma emoção espontânea. Esse alguém, que encara a vida como um mero estratagema calculado, não existe no meu mundo. Sinto muito, doutora.

Incansável, Martha Stout me mostrou hipóteses sobre a origem do transtorno. Pesquisas defendem que a sociopatia é uma mistura entre traços genéticos — uma predisposição hereditária — e o ambiente, palco de crescimento da criança. Ou seja, natureza e cultura. Contudo, o resultado dessa combinação não é um ogro manco e sanguinolento. Os sociopatas se parecem comigo e com você (ainda mais se você for um deles) e levam uma vida normal, embora superficial e vazia. E, o que é pior, carregam como característica básica uma dose agressiva de charme. Um carisma quase hipnótico, digno de todo bom predador selvagem.

Página 142 e 143
(…) Para resumir, talvez de forma clara demais e, portanto, incômoda: assim como acontece com a presença da consciência, a falta de um senso moral indica uma situação ainda mais complexa, porque a consciência não existe sem a capacidade de amar e, em última instância, a sociopatia se baseia na ausência de amor. (…) Nesse tipo de mente, os outros, mesmo os “amigos” e parentes, são, no máximo, peças úteis do jogo. O amor não é uma possibilidade e nem mesmo é compreendido quando outra pessoa o demonstra.

Esse trecho provocou em mim uma sensação engraçada, quase familiar. Mas foi o próximo que abriu meus olhos num único golpe:

Página 147 e 148
(…) O transtorno de vinculação é um distúrbio trágico que ocorre quando o vínculo na primeira infância é rompido por incompetência dos pais (como, por exemplo, quando existe um grave distúrbio emocional por parte de um deles) ou porque o bebê é deixado sozinho durante muito tempo (como acontecia nos orfanatos de antigamente).

Eu conheci alguém assim! Um garotinho. No relacionamento dos pais dele, o amor era forjado e não se sustentou sozinho sem o auxílio de uma poção mágica. O garotinho foi abandonado pelo pai, e tirou a vida da mãe durante o trabalho de parto. Ele cresceu num orfanato, onde exercitou seu poder sobre as outras crianças; não economizando astúcia para maquiar sua crueldade. Aos onze anos, um senhor excêntrico confirmou o que ele sempre soube: ele era diferente. Especial. Na adolescência, cristalizou o desejo de imortalizar tamanha superioridade. Conquistaria a morte, sua fraqueza, sacrificando o rapaz Tom Riddle (e com ele todo seu passado vergonhoso) para dar vida ao Lord das Trevas.

Muito já se foi dito — com razão — a respeito das semelhanças entre Voldemort e Hitler. Entretanto, deixando de lado as referências históricas e analisando somente a personalidade do sonserino, poderíamos considerá-lo um psicopata?

O sangue frio ao matar o pai e os avós; o charme persuasivo que ludibriou — quase — todos os professores de Hogwarts, assim como a Dama Cinzenta, Hepzibá Smith e muitos outros; a falta de remorso e a crença inabalável na sua supremacia (que não admitia o valor de coisas insignificantes, como elfos domésticos e o amor); a falta de vínculos até mesmo com os Comensais da Morte, meros peões descartáveis e substituíveis. Confrontados com estes aspectos, nenhum outro personagem se aproximou como Voldemort da ausência total de consciência. Snape era movido por amor. Até mesmo Bellatrix amava: viveu e morreu defendendo uma causa, nutrindo uma obsessão pelo mestre a quem era visceralmente fiel. As raras vezes em que J.K. descreveu Voldemort tendo reações emocionais, estas se encaixariam nos sentimentos que Martha Stout chama de reações afetivas primitivas. “A frustração pode gerar raiva ou fúria em um sociopata. E o sucesso (…) costuma causar uma excitação agressiva, uma ‘euforia’ passível de ser vivenciada como um momento de júbilo. Essas reações emocionais quase nunca são duradouras.’’ (p. 143). Eram nesses momentos fugazes, de perda de controle, que Harry tinha vislumbres da realidade de Voldemort.

Página 681 (OdF)
Há uma sala no Departamento de Mistérios que está sempre trancada. Contém uma força mais maravilhosa e mais terrível do que a morte, do que a inteligência humana, do que as forças da natureza. (…) É o poder guardado naquela sala que você possui em grande quantidade, e que Voldemort não possui. (…) No fim, não teve importância que você não pudesse fechar sua mente. Foi o seu coração que o salvou.

Caso a resposta para a minha pergunta fosse afirmativa, a mensagem central de Harry Potter ficaria, a meu ver, ainda mais emblemática. Como Martha Stout mostra em “Meu vizinho é um psicopata”, não é raro pessoas considerarem os sentimentos — o amor — um empecilho intransponível. É a consciência que nos impede de fazer o que for preciso para atingir um Bem Maior individual. Porém, quem aprendeu a amar pessoas feitas de papel e palavras e ficou com elas até o fim, apesar de todo sofrimento embutido, sabe que sentir pode ser perigoso; porque envolve carregar dentro de si pedacinhos de outras almas. Mas é isso que nos torna imortal. Este é o poder que tantos Lordes das Trevas desconhecem, e por eles eu apenas sinto pena.

Mariana Rezende daria uma ótima psicóloga.