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Os secundários

Harry é único; suas escolhas e seus passos revelam, assim como uma vez afirmou Dumbledore, quem ele é. Mas não somente isso. Sua história, ainda que mágica, é muito próxima da nossa: ela mostra como a vida muitas vezes nos escapa e acaba sendo tecida não pelos fios que escolhedmos, mas por todo um conjunto de mãos.

Esta é a ideia que Mariana Rezende defende em sua coluna de hoje. Com bastante perspicácia, ela aponta algumas personalidades que guiaram Harry por sua jornada. Como seria a história sem eles? Ou melhor: haveria mesmo história sem eles?



Os secundários

por Mariana Rezende

Poucas horas depois de ter sido resgatado pelo mundo da magia, o pequeno Harry encontrou-se rodeado por histórias grandiosas. Soube, através de Hagrid, como seus pais morreram lutando bravamente contra o maior bruxo das trevas de todos os tempos. Ouviu comentários a respeito do diretor de Hogwarts, um homem que acumulava grandes qualidades (incluindo a excentricidade inerente a todo gênio) e ouviu, também, lendas sobre ele próprio: O Menino Que Sobreviveu, o herói responsável por colocar um fim à guerra que espalhava terror e o sangue impuro de bruxos e trouxas. E, à medida que foi amadurecendo em seu novo lar, Harry conheceu muitas outras pessoas ilustres. Bruxos e bruxas poderosos, corajosos, habilidosos. Daquele tipo que faz a diferença, seja para o bem ou para o mal.

Curiosamente, entretanto, os principais feitos – os momentos chave, que ditaram o rumo da trama principal – foram entregues por mãos inesperadas, quase despercebidas. Atos pequenos, sutis, inicialmente irrelevantes que ganharam peso e trouxeram consequências que não se encaixam com as expectativas mínimas em relação aos personagens responsáveis. Para defender meu argumento, selecionei seis situações que considero vitais para o desenrolar da história — para estruturar o começo, desenrolar o meio e embrulhar o fim.

A profecia
O mistério envolvendo o triunfo do bebê dos Potter contra Você-Sabe-Quem nos manteve cativos até o final do quinto livro. Por que Voldemort se sentiu ameaçado? Como uma criaturinha com poucos meses de vida poderia fragilizar a magnificência do Lord e de todos aqueles que o seguiam? A profecia escondida no Departamento de Mistérios revelou o segredo que deu início à jornada: alguém previra que a criança capaz de colocar um fim no reinado das trevas estava a caminho, munida de um poder desconhecido por seus rivais. E, mesmo assim, ainda precisamos avançar bons meses de espera e algumas centenas de páginas para descobrirmos a autora de tal profecia: Sibila Trelawney, professora de Adivinhação, cegueta, isolada, rotulada como charlatã, desacreditada por alunos e colegas de trabalho devido às suas previsões dramáticas que tradicionalmente envolviam a morte de algum estudante em todo começo de ano. Humilhada por Umbridge, só não foi escorraçada do castelo pela interferência bondosa – e cheia de segundas intenções – de Dumbledore. A grande profecia, a profecia que alterou irreparavelmente o curso da história bruxa, foi feita pela vidente que fedia a xerez barato e sempre perambulava pelas margens. Ela apareceu aqui e ali para nos fazer rir, ou para nos surpreender com a sua segunda profecia, sobre o retorno de Voldemort graças ao auxílio de um servo fiel. A partir da profecia, em meio a uma entrevista de emprego catastrófica, o jovem Snape (na época um garoto igualmente zombado, embora muito mais poderoso) pode repassar parte das informações para o seu mestre a respeito da ameaça que nascia. O resto, nós já sabemos.

A traição
Mesmo determinado em exterminar o perigo registrado na profecia, Voldemort apenas identificou o alvo que julgava ser o certo através de um espião. Não creio que seja necessário entrar em detalhes a respeito de Rabicho. A sua covardia, a fraqueza que sempre o levava a procurar refúgio atrás de aliados poderosos, já foi relatada em detalhes. Não vem ao caso esmiuçarmos seus motivos ou justificarmos seus atos. O importante é a falta de importância que lhe era dada. Um verdadeiro zero a esquerda, equipado com uma personalidade apagada que não levaria ninguém a esperar uma atitude significativa. E, ao mesmo tempo, lá estava ele: guiando Voldemort até a casa de James e Lily, indiretamente incapacitando o bruxo e catapultando o bebê para o status de salvador; retornando para o mestre em frangalhos após ser encurralado pelos antigos amigos; providenciando para Voldemort uma funcionária do Ministério cheia de informações sobre o Torneio Tribruxo e um certo comensal da morte que todos julgavam ter morrido; dando, de bom grado, a própria carne em prol da ressurreição de Voldemort e morrendo nas mãos de prata durante um momento de fraqueza, possibilitando a fuga de Harry da mansão dos Malfoy.

A vingança
Voltando à minha primeira situação, os acontecimentos que envolveram a ida de Harry ao Departamento de Mistérios também tiveram o empurrãozinho de outra figura bastante desprezada por seus companheiros de livro. Monstro não era um elfo doméstico querido. Produto da mania puro-sangue de seus donos, Monstro apresentava-se como uma criatura preconceituosa, com uma sutil inclinação para a loucura e o furto de objetos – aparentemente – de valor sentimental. A carência e o ressentimento o levaram a buscar conforto nas mulheres remanescentes da família Black, confidenciando a elas pequenos detalhes sobre o relacionamento de Harry com Sirius Black. O suficiente para que Voldemort enfim soubesse como atrair Harry para o Ministério da Magia. A destruição da profecia, a morte de Sirius e a confissão de Dumbledore foram resultados deste pequeno ato.

O amor de mãe
Assim como muitos outros personagens “secundários”, Narcissa não teve muito espaço para se desenvolver. A respeito dela, foi-nos mostrado o básico. Mãe de Draco Malfoy, provavelmente capaz de ser tão desagradável quanto o filho e o marido. Detalhes sobre sua vida e traços de sua personalidade foram censurados, moldando-a no papel que ela viria a preencher muitíssimo bem: o de mãe. Diferente de Lily e Molly, mães dispostas a literalmente jogar-se na frente de seus filhos lutando para defendê-los até a morte, o amor de Narcissa pelo filho fez com que ela se posicionasse de maneira mais discreta, escondendo sua escolha atrás da cortina de cabelos louros e da mão que tateava à procura de um coração vivo, capaz de dar a resposta que ela tanto precisava ouvir. Draco estava vivo! E foi assim, protegido mais uma vez pelo amor de mãe, que Harry pode adentrar o castelo para travar o duelo final contra Voldemort.

A coragem
Neville talvez seja quem melhor represente a ideia central dessa coluna. Um garotinho gorducho, sem nenhum talento aparente para magia (chegando ao ponto de ser visto como um aborto pelos familiares), debochado por colegas e professores. A transformação de Neville foi lenta, praticamente imperceptível em meio aos grandes eventos que o cercavam. As qualidades grifinórias que o Chapéu Seletor enxergara para colocá-lo na casa dos leões estavam dormentes, e acordaram em tempo de enfrentar Voldemort e destruir a última Horcrux.


O feitiço

O elemento surpresa não é uma característica reservada somente para personagens. O feitiço Expelliarmus foi usado por Harry em “O Cálice de Fogo” e o ajudou a escapar do cemitério, além de ter sido o feitiço por ele escolhido durante a batalha final contra Voldemort. Draco também fez uso do Expelliarmus no alto da torre de Astronomia, desarmando Dumbledore e tornando-se – mesmo sem saber – o novo dono da Varinha das Varinhas (Varinha Anciã, ou como preferir chamar). Ao mesmo tempo, tal feitiço, por mais útil que fosse, não é o tipo de defesa esperada em duelos, principalmente em situações de vida ou de morte. Harry foi reconhecido pelos Comensais (na fuga em “Os Sete Potters”) justamente por usá-lo em Stan Shunpike, e mais tarde foi repreendido por Lupin pelo mesmo motivo; dando a entender que o feitiço dificilmente garantiria uma vantagem, ou segurança.

Levando tudo isso em conta, é interessante notar como a lição passada por Dumbledore (de que as nossas ações revelam quem realmente somos, muito mais que nossas habilidades) está presente de maneira tão marcante por toda série. A mensagem de Jo não poderia ser mais clara: cada escolha, por mais tola que pareça, leva consigo um pouco de nós mesmos e podem causar um impacto muito maior do que o imaginado. Cada um de nós, por mais subestimados que possamos parecer, carrega o poder de mudar o ambiente que nos cerca. O que abre um leque de possibilidades e influência deveras interessante, e uma responsabilidade que, sinceramente, chega a ser um pouquinho assustadora.

Mariana Rezende já está fazendo sua parte para mover a grande engrenagem do mundo.