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Conto de Fadas? Oh, não!

Contos de fadas são narrativas simples, em que personagens não são lá muito individualizadas. Elas têm como fim ilustrar alguma máxima, geralmente moral.
Harry Potter se encaixa na categoria? É próximo deste tipo de narrativa?
Para Isadora Cecatto, nossa colunista, a resposta é um redondo Não.
Leia, aqui, o texto na íntegra. Aproveite e deixe seus preciosos comentários no rodapé da página.

Conto de fadas? Oh, não!

Quando o sétimo e último livro da saga Harry Potter chegou às mãos dos fãs do mundo inteiro, as reações no fim da leitura foram variadas e divergentes: houve fãs que se revoltaram, fãs que se apaixonaram pelo desfecho e outros que ficaram indiferentes ou completamente decepcionados…

O que é bastante normal, levando em conta o grande número de expectativas diferentes que os milhares de amantes dos livros carregavam consigo. Dentre todas essas reações, me chamou a atenção uma que acometeu muita gente: classificar o epílogo como final de novela mexicana ou de conto de fadas. E é sobre isso que essa coluna vai tratar, sob um ponto de vista contrário a essa opinião.

É inegável que a série criada por J.K. Rowling tem, ao menos nos dois primeiros livros, um caráter infanto-juvenil. Por mais que os livros tenham conquistado pessoas de todas as idades, a intenção inicial da autora fica clara, se analisada a narração excessivamente explicativa e sem muita riqueza de vocabulário dos primeiros, embora esses fatores tenham se dissipado à medida que os novos surgiam, fazendo com que a saga crescesse junto dos leitores de uma forma quase que inédita na literatura destinada às crianças. Assim sendo, um final triste e sombrio não seria bem recebido pelo público atingido, se tornando inconcebível.

Mas não é só pensando nas crianças que eu considero o epílogo de Harry Potter e as Relíquias da Morte um bom desfecho. Além do fato acima citado, temos que levar em conta uma questão que envolve a história de Harry e seus amigos em si, questão essa que justifica toda e qualquer semelhança de “Dezenove Anos Depois” com uma historinha da Disney: foi necessária uma guerra de anos e, acredito eu, no mínimo mais uma década depois que ela teve seu fim, pra que alguma paz fosse alcançada.

Sendo sincera, classificar o epílogo como “feliz demais” é, pra mim, ou uma atitude precipitada ou uma grande falta de tato. Quem leu todos os sete livros sequer precisa se esforçar pra perceber que Harry, Ron e Hermione, bem como todos os bruxos que trilharam o caminho do bem junto deles, passaram pelos mais variados tipos de situações ruins antes de vencer a grande guerra do final. Nem em Relíquias da Morte nem em nenhum dos outros seis livros, a jornada do herói deixou de ser árdua ―muito menos foi se tornando gradativamente mais simples. Pelo contrário: no último livro, vimos ainda mais sangue inocente derramado, mais crueldades, a perda completa da ingenuidade já reduzida… Enfim, uma infinidade de acontecimentos que fizeram do livro uma obra bastante sombria, sendo até otimista.

Desde sempre, Harry nunca tivera nenhum ano de paz permanente. Quando criança, além de crescer sem pais, passava seus dias no armário debaixo da escada, apanhando do primo ou servindo o café da manhã aos tios carrascos. Ao descobrir que era bruxo, o herói teve a esperança de que finalmente poderia desfrutar de uma vida que julgava merecida, imaginando que sua nova condição era a garantia de um lar, do surgimento inédito de amigos e de que não sofreria mais nas mãos de pessoas más como sua “família”. Mas não demorou muito para que nós percebêssemos junto de Harry que quase tudo seria mesmo perfeito, porém com uma importante exceção: Voldemort existia e dedicava sua vida a matá-lo: a ele, o jovem Harry Potter. E assim o filho de Lilly e James ingressou, sem escolha, numa jornada de perigosas perseguições, ameaças cada vez mais próximas e perdas inaceitáveis. Com apenas onze anos, venceu Você-Sabe-Quem mais uma vez ao encontrar a Pedra Filosofal. Logo no ano seguinte, se viu envolvido em estranhos acontecimentos que o levaram, por fim, a um encontro com um enorme basilisco dentro de uma Câmara Secreta de perigos seculares. E, como se não bastasse, em seu terceiro ano de escola Harry descobre que a morte de seus pais é devida à uma terrível traição, concebida por alguém que estava mais próximo do que ele e seus amigos poderiam imaginar. Ao menos surgiu Sirius, a família que Harry nunca teve… Mas que lhe seria tirada em apenas dois anos, depois de um torneio que quase lhe arranca a vida por muitas vezes, durante um difícil duelo no Ministério da Magia.

Sexto ano chegou, romances no ar, a perspectiva de um tempo pra curtir o melhor de ser estudante… Oh, não! Era bom demais pra ser verdade… A força de Harry é testada de forma ainda mais cruel, quando o grande mestre Dumbledore, seu porto seguro, lhe conta a verdade sobre tudo e faz o favor de deixá-lo sozinho pra resolver o emaranhado de problemas que se estendem à sua frente. Com seus amigos, é claro, mas certamente mais sozinho do que nunca. E cheio de dúvidas incansáveis.

O último ano da vida de Harry Potter ao qual J.K. Rowling dedicou um livro foi indubitavelmente o mais difícil dentre todos os por ele vividos. A morte se mostra uma inimiga e tanto, cada vez mais próxima. O lado do bem é enfraquecido aos poucos, e é com uma força sem precedentes que o-menino-que-sobreviveu encara seu pior inimigo para uma missão que muitos julgariam impossível. E ele vai em frente. Amigos mortos, outros em perigo constante, o peso da perseguição de dezessete anos caindo sobre seus ombros como nunca. Mais do que um garoto que cresceu sem pais, Harry viu quase tudo e todos que amava escapando por entre seus dedos de repente, sem aviso, sem tempo pra que pudesse se preparar. E mesmo isso não foi suficiente pra que ele fraquejasse e parasse, em nome da própria sobrevivência: sem hesitação, foi até o fim.

E é diante dessa análise de como foi difícil a vida, tanto pra Harry quanto pras pessoas que sempre o apoiaram, que eu me pergunto se casar e ter filhos, depois de quase duas décadas, faz dos protagonistas da saga personagens de um conto de fadas. Sete livros tratando de temas complicados como a morte, a depressão e a complexidade do amor, e um epílogo positivo é considerado pura e simplesmente ruim, por ser feliz demais?

Não resta dúvida de que os dezenove anos que Rowling nos poupou de conhecer não foram só flores. Ou será que a guerra terminou num dia, e na manhã seguinte todos já estavam aos beijos e abraços com sorrisos estampados no rosto, esquecendo de toda a dor que neles ardia, ainda parte do presente? Será que não é justo que, dezenove anos depois de toda essa dor, quatro bruxos que lutaram pelo bem sem cansaço encontrem a paz de constituir uma família e usufruir das recompensas que uma guerra vencida pode trazer? É preciso que o mal vença no final pra que uma história seja considerada autêntica e digna de admiração?

Com esse pensamento, concluo que não: o epílogo de Harry Potter e as Relíquias da Morte, que mostrou um Harry, uma Gina, um Ron e uma Hermione levando vidas felizes e passando tudo o que aprenderam a seus filhos de forma encantadora, não pode ser considerado um conto de fadas, e arrisco dizer que tampouco um “final feliz”. Apenas se fez justiça, a qual veio com atraso e por isso deixou marcas. E isso não deixa margens para que o trabalho da autora seja desmerecido ou ridicularizado.

Não podemos ignorar que, acima de tudo, o embarque dos filhos de Harry e Gina, Ron e Hermione no Expresso de Hogwarts naquele primeiro de setembro foi um consolo. Com mestria, J.K. Rowling plantou uma sementinha de esperança no coração de cada um dos fãs, mostrando que aquilo que encarávamos como o fim de tudo era na verdade a prova de que esse “tudo” seria eterno. E eu não julgo como “sem senso crítico” aqueles que, concordando comigo, se apaixonaram por esse lindo desfecho e compreenderam que ele não foi sinônimo de felicidade plena.

Conto de fadas? Oh, não. Não uma obra onde há dementadores e a morte de alguém como Fred Weasley. Certamente não.

Isadora Cecatto é membro do corpo de colunistas do Potterish.