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Literatura entre dois mundos

A maioria dos fãs de “Harry Potter” reivindica à série e à própria Jo Rowling o mérito por ter despertado em si a verdadeira paixão pela leitura. Há quem diga, aliás, que sua escrita também seja movida pelas mesmas origens.

Talvez nossa colunista Brunna Cassales seja uma das pessoas que pertence a este último grupo. Em seu texto de hoje, ela procura recordar o papel importante que a figura do livro ocupa dentro do próprio enredo da saga, do mesmo modo que ocorre no nosso mundo dos trouxas. Leia a íntegra aqui e compartilhe conosco suas ideias a respeito.


Um livro é a prova de que os homens são capazes de fazer magia.
Carl Sagan

Para todos os potterianos, independente de a qual das Casas pertença, com qual personagem se identifique mais ou qual dos sete livros prefira, pelo menos uma coisa é unânime: o reconhecimento de que a experiência de ter lido “Harry Potter” é uma coisa mágica. Fascinamo-nos não só pelo fato de ser uma história épica, mas também por termos submergido em um mundo à parte do que conhecemos e que, mesmo sendo diferente do nosso, apresenta semelhanças e faz com que nos sintamos integrados a ele. Dentre as inúmeras características que permeiam essa conclusão, a forte presença de livros e obras literárias se destaca, porque mostra que essa inesgotável fonte de conhecimento está tão próxima de nós e dos autores que admiramos quanto de um aluno de Hogwarts e de um escritor prestigiado com seus títulos na vitrine da Floreios e Borrões.

Depois de tudo que acompanhamos, é possível imaginar uma ponte literária entre o Mundo dos Bruxos e o Mundo dos Trouxas. Como sabemos, os bruxos tem seus próprios contos passados de geração em geração, seus livros didáticos, suas biografias, seus romances… Assim como nós! E, se pararmos para analisar, por exemplo, os “Contos de Beedle”, perceberemos que “Babbity, a Coelha” e “O Coração Peludo do Mago” são tão fantasiosos para eles como “Branca de Neve” e “Cinderela” são para nós. Não há diferença quanto ao acesso a determinado gênero. Os bruxos não têm classificações literárias a mais. É preciso ser muito trouxa mesmo para não se dar conta de que as maravilhas que um livro pode oferecer para eles estão ao nosso alcance.

A sensação de folhear as páginas e ir descobrindo aos poucos os pontos-chave de um bom livro é tão prazerosa para quem acabou de ser cativado pela leitura como para os leitores inveterados, não importa sua origem ou capacidade. O que se sente é algo singular, difícil de descrever. O fascínio que os livros exercem sobre nós traz consigo nosso próprio pedacinho de mundo mágico. E não é só ler que desencadeia todas essas reações. O processo de escrever pode ser árduo; entretanto, seja lá de qual dos mundos se faça parte, com certeza é bastante recompensador. Poder criar é uma dádiva. Não é fácil obter inspiração e colocar tudo o que idealizamos no papel, seja com o auxílio de uma varinha ou não. O motivo que nos coloca no mesmo patamar dos personagens fictícios dotados de magia que admiramos é um tanto óbvio… Frutos da imaginação de Jo ou fãs dela, nós possuímos sentimentos genuinamente humanos. Enquanto tais, somos tomados por dúvidas, receios, ímpetos, bloqueios. Somos falhos. O medo nos ajuda quando na medida certa, não permitindo excessos descabidos, assim como em todos os parâmetros da vida. E quando erros são cometidos, lições são assimiladas naturalmente para que não se repitam. Já quando reconhecemos a autoria de algo realmente bom, ficamos em estado de êxtase. Quem escreve passa por um turbilhão de emoções, repleto de rompantes e calmarias, da mesma forma que os personagens que têm suas tramas desenvolvidas através da história que seu criador resolveu contar.

Partindo da premissa de que uma criação literária pode causar um verdadeiro enlevo — seja em quem a criou ou em quem a descobriu, na vida real ou na ficção —, sigo agora por três vertentes que se compõem na formação de três personalidades elaboradas com tinta e papel que, embora diferentes, se encontram quando o assunto é amor aos livros e à amplitude de significados que trazem consigo. Essas três personalidades pertencem a personagens bruxos, mas é claro que, se não citasse nomes, poderia estar me referindo a de trouxas para os quais não se poderia dizer que a magia nunca apareceu.

A primeira pertence a um homem que dedicou sua vida a estudar não só os livros, mas também o que há por trás deles; enxergou com clareza desde a mais simples constatação até as entrelinhas mais contundentes; usou o tempo ao seu favor, extraindo valiosos ensinamentos para, com sabedoria, encontrar as respostas certas. Alvo Dumbledore, talvez impulsionado pela veracidade de que “a esperança brota eternamente”, não desistiu e deixou em legado não só ferramentas, mas instruções que a vida lhe ensinara.

A segunda personalidade surge então, pertencente à incumbida de salvaguardar o que consiste na forma tangível das verdades que Dumbledore descobriu. Irma Pince, a bibliotecária de Hogwarts, sempre demonstrou seu amor para com os livros de forma possessiva e abertamente. Seu cuidado constante e esforço desmedido para defender o patrimônio literário da escola, protegendo-o de quaisquer danos físicos, me faz ousar apontá-la como uma bibliófila incorruptível, pois, embora não colecionasse os livros que estavam ao seu poder, tinha por eles, por cada exemplar, uma enorme devoção. Isso se explica através do fato de que antes de bibliotecária dedicada era uma leitora tão apaixonada e ciente da relevância que as informações de cada livro continha — para o bem ou para o mal — que considerava um livro algo único, digno de zelo e atenção.

A terceira personalidade pertence a alguém privilegiado, um exemplo daqueles que recebem o resultado final da adição de informações descobertas e bem protegidas na forma de livro para, a partir dele, adquirir conhecimento e tirar suas próprias conclusões. Hermione Granger sempre soube que o que havia nos livros era algo essencial para sua formação, e sentia um incomensurável prazer em se enveredar pelas vielas da leitura, empenhando-se ao máximo em estudar cada detalhe e não deixar nada passar despercebido. Ela compreendia o sentido pleno das palavras, embora sempre muito racional. Não foi à toa que se tornou uma aluna brilhante: a sede de aprender percorria suas veias. O valor que jamais deixou de dar à importância dos livros a tornou mais madura e competente, e concedeu a ela uma visão mais ampla sobre o mundo — inteiro, sem segregações — ao seu redor.

Esta coluna é dedicada a minha irmã — e bibliotecária —, Dani, que foi quem me apresentou a Harry e a todo o universo literário, possibilitando que eu me tornasse essa irremediável amante dos livros que sou hoje.

Brunna Cassales, mais do que ler, ama escrever.