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Falso livre-arbítrio

Tratando de um tema bastante discutido entre os leitores assíduos da saga Potter, a colunista Bruna Moreno analisa o conceito de viagem no tempo presente na obra de Rowling, à medida em que mostra a diferença deste com relação ao mesmo em outro de seus vícios, a trilogia “De Volta para o Futuro”, de Zemeckis.Leia a coluna completa aqui e entenda a divergência na forma de abordagem e construção conceitual das duas obras, além de relembrar um pouco os bons momentos das consagradas séries.

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Esses dias estive revendo o terceiro filme e algo me incomodou muito. Lembro que quando li o livro (e eu o li um número considerável de vezes) também senti o mesmo desconforto. Nada a ver com o aparecimento do meu personagem preferido, fui constatar depois: o caso era aquela parte com Hermione e seu vira-tempo, a suposta morte de Bicuço da primeira vez e o aparente retorno de James Potter lá pelo final. Algo não se encaixa com o enredo da história e a imagem que nossa tia Jo quis passar, e é sobre isso que vou falar nesta minha (espero que não muito extensa) coluna.

Antes de explicar o que é esse “algo”, é preciso fazer algumas explicações e outras contextualizações.
Eu poderia me fazer valer de teorias físicas e de palavras de grandes estudiosos de Exatas. Eu bem sei que Einstein encostou naquilo que quero falar, e já li, bem por cima, uma dita Teoria das Cordas sobre o assunto. O fato é que sou de Humanas e ponho-me no meu lugar; não quero pagar mico. O meio mais perto para chegar ao meu assunto não será a ciência propriamente dita, mas sim a ficção científica — e será com meu fandom mais amado (só ele ganha do Mr. Potter no meu coração), meu filme preferido, “De Volta para o Futuro”. Pode ser clichê, pode passar na Sessão da Tarde, mas eu o amo mesmo assim (vocês, fãs incondicionais, me entenderão). Pode não ser teórico nem acadêmico, mas dele eu entendo, e com ele não vou pagar mico.

ZEMECKIS E ROWLING, DUAS MENTES BRILHANTES

Parto do princípio de que todos já tiveram o prazer de assistir à obra-prima dirigida por Spielberg e escrita por Zemeckis. Saber de alguns detalhes do enredo será essencial ao meu texto. Para tanto, refresco a memória de vocês com um breve resumo da trilogia:

Marty McFly, estudante da High School americana e amante do típico rock’n’roll dos 80’s, é convidado por seu amigo cientista doutor Emmet Brown a assistir o teste de sua nova invenção. Marty não sabia, no entanto, que a dita invenção era uma máquina do tempo, e que seria obrigado a usá-la, naquele dia, para escapar de terroristas. Acabou voltando para 1955 (o presente do filme é representado por 1985), no exato dia em que seu pai e mãe tiveram o primeiro encontro, e sua descuidada interferência muda os acontecimentos passados e impede seus pais de se conhecerem. Neste primeiro filme, Marty luta para convencer o Doc Brown de trinta anos atrás a lhe ajudar a voltar para o futuro e tentar consertar o passado, nada muito diferente do que ocorre nos outros dois filmes seguintes (no segundo, ele acaba voltando para 1955, e no terceiro, cai em 1885), e que não o impede de ser, na minha opinião, fascinante.

Mas esta não é questão, certo? O que eu realmente quero que vocês prestem atenção é no processo da viagem temporal e seu desenrolar. Quando, no começo da história, Marty está em 1985, sua vida tem uma primeira apresentação: ele pertence a uma família de classe média, sua mãe é fumante e alcoólatra e seu pai é covarde e subjugado por seu chefe, Biff Tuney. No entanto, ao sair em 1955 e modificar a história do primeiro encontro de seus pais, seu retorno lhe aguarda um novo ano de 1985: agora, sua família é rica e seu carro é novo; sua mãe está saudável e bonita e seu pai torna-se um homem de elevada alto-estima e chefe de Biff. Ninguém além de Marty tem consciência dessas mudanças, e também não há modo de se prová-las: uma foto tirada no presente e levada para o passado (como ocorre mais claramente no terceiro filme) tem sua imagem apagada caso este passado seja modificado.

Assim como Marty, Hermione também tem a chance de voltar para o passado, mas através de um aparato bem menos tecnológico e muito mais mágico: o vira-tempo emprestado por McGonagall, vindo do Ministério. Ela o usa não somente para freqüentar suas muitas e exageradas aulas, como também para ajudar Sirius Black a escapar dos dementadores. Este é um dos primeiros momentos da série em que a senhorita Granger deixa de ser tão certinha — e nós certamente agradecemos por isso.

Mas deixemos de lado o atrevimento e voltemos à questão do tempo. Quando, no filme, Harry, Ron e Hermione estão na cabana de Hagrid, somente se dão conta de que Fudge e Dumbledore se aproximam porque algumas sementes (de abóbora? Eu ainda não consegui decifrar) aparecem pela janela e os fazem olhar para fora. Do mesmo modo, o Lupin-lobisomem somente não ataca o trio porque é atraído por um uivo vindo da Floresta Proibida. Posteriormente na história, nós espectadores descobrimos que as sementes e uivos que surgem do nada são, na verdade, lançadas e produzidos pelos próprios Harry e Hermione vindos do futuro.

Vêem? Embora a viagem temporal esteja presente nas duas histórias, os conceitos de cada uma são muito diferentes. Em “De Volta para o Futuro”, a mudança do passado desencadeia a abertura de uma nova realidade, alternativa, individual e pertinente aos novos acontecimentos passados. Já em “Prisioneiro de Azkaban”, a realidade é única: o presente se mostra de uma única forma, criada a partir de acontecimentos que somente se darão no futuro. Enquanto no primeiro filme existe a possibilidade da modificação (qualquer detalhe pode provocar uma reação em cadeia intermitente no futuro) e de surgimento de inúmeras realidades alternativas, no segundo, presente e futuro estão conectados diretamente, de maneira que um depende do outro para existir do modo que é. Marty pode optar por seus pais se conhecerem na escola ou num hospital, enquanto que Hermione não pode escolher salvar Harry dos dementadores no lugar dele próprio, porque isso, delimitado pelo futuro, já aconteceu no passado.

A não-possibilidade de se escolher como e quando os eventos ocorrerão é o que marca, no mundo mágico de Harry, um fato que passa despercebido aos olhos do leitor: os personagens não têm controle absoluto de suas vidas e são manipulados pelo que o destino lhes reserva.

AS VERDADEIRAS SIBILAS

Agora, tenho certeza de que os meus leitores estão se descabelando comigo e repetindo intermitentemente as palavras de Dumbledore: “mas são nossas escolhas que revelam o que realmente somos, muito mais do que nossas qualidades! Como não existem escolhas?!”. O caso é aqui, meu caro leitor, a concepção é um tanto quanto diferente. Estas escolhas a que Albus se refere no segundo livro são modeladas e já redigidas pelo destino sobre o qual falei há pouco: este destino, que não abre espaço para modificações de acontecimentos de acordo com as vontades dos personagens, é o que delimita e escreve as ditas “escolhas” que definem o caráter.

E considerem: como seria possível conceber a idéia de um estudo como Adivinhação em um mundo que não tenha um futuro definido e certo? A mera existência de uma figura como Sibila Trelawney — contemplada aqui no momento de seu transe, e não de sua farsa — anula por completo a possibilidade de se alterar o tempo, pois, fosse isso realizável, profecias não poderiam ser feitas e certamente não haveria uma seção cheia delas no Ministério da Magia.

Movida por essa minha teoria recém-descoberta, atrevo-me a continuar a argumentar contra Dumbledore e dizer que Voldemort não teve a mínima chance de escolha entre Harry e Neville ao saber da profecia que guardava sua destruição. Ou, reformulando, teve, sim: uma verdadeira escolha aos olhos de todos, porém mentirosa na realidade.

O primeiro e decisivo passo é não se limitar a enxergar a profecia presa ao momento de seu concebimento, mas pertencente ao tempo histórico-cronológico sob uma visão ampla e geral, possível de ser percebida com começo, meio e fim, já que temos em mãos uma série. Não se pode esquecer, ainda, que todos os momentos do tempo estão conectados uns aos outros: o fim modela o começo, e o começo faz surgir o fim. Nesta concepção, ler que o Lorde das Trevas o [aquele que tem o poder para destruir o Lorde das Trevas] marcará como seu igual, mas ele terá um poder que o Lorde das Trevas desconhece é subentender única e exclusivamente a figura de Harry Potter, porque sabemos que, no futuro, Neville Longbottom não desempenha esse papel de herói. A profecia trata de um futuro que não se restringe a uma possibilidade de realidade alternativa, como acontece em “De Volta para o Futuro”, pois, na verdade, o enxerga de maneira larga e absoluta; não o considera dentro de um momento imediato, mas através de uma maneira ampla.

MÃOS ÚNICAS

Nas cenas finais do terceiro filme da trilogia “De Volta para o Futuro”, Jennifer, a namorada de Marty, pede a Doc Brown explicações sobre as alterações do futuro e do presente. O que isso significa?, ela pergunta, no que ele responde com uma de minhas falas preferidas da película: Significa que seu futuro ainda não foi escrito. O de ninguém foi. O seu futuro é o que você fizer dele. Então façam um bom futuro, vocês dois.

Harry preocupou-se em fazer um bom futuro também, para ele, para Ginny e para todos os sobreviventes de guerra. E ainda que eu afirme e bata o pé em minha posição de que este futuro já estava pré-definido, não posso negar a atuação de Harry (talvez sobreposta a qualquer evento paralelo que assegurasse a derrota de Voldemort) e sua atividade em sua construção.

Referências
• Filme “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”, adaptação desejosa do meu livro preferido
• Trilogia “De Volta Para Futuro”, a qual não irei mais elogiar.

Bruna Moreno não precisa viajar no tempo para ser reconhecidamente brilhante.